O Calvário de Manoel Vieira

19/08/2024

O calvário de Manoel Vieira

Tadeu Alencar

Duas mortes levaram-me a percorrer o labirinto familiar: a de Manoel Vieira e a de Bazin.

Nada tiveram em comum as duas mortes senão o luto fechado de uma cidade açoitada pelo vento, como em nenhum outro lugar, frio e seco.

A de Manoel Vieira foi - como poucas - uma morte bela. Foi uma morte negra, de capa negra, de laço negro! Uma morte elegante, silenciosa e ensurdecedora como a mais torrencial das óperas de Wagner. Sua morte não quis público. Não causou alarido, pânico, desmaios.

Convidado pelo pressentimento de que ainda antes da aurora uma revoada de corujas anunciaria o seu impávido passamento - Manoel Vieira sentou-se à cama.

Não tinha o olhar transido dos condenados à morte, olho de peixe vivo, olho de peixe morto.

Coçou o rosário de osso no bolso do camisão a buscar refúgio numa fé que não tinha.

Consultou a madrugada lançando à casa um olhar de quem se despede: deteve-se no cedro das ripas, nos tachos de ferro onde a cabroeira do cangaço se lambuzara de coalhada, no relógio torto da parede, prestes a esfacelar sua última fração de tempo...

Não desgrudou do relógio, viu-o extinguindo o último ânimo de sua engrenagem, como se uma mola distendesse ao extremo, à imobilidade mais absoluta e fiel.

O cuco mudo para sempre, vaticinando - com seu silêncio – a recolhida glória do último suspiro de um homem desesperado à sua maneira.

1920!

Um segredo incômodo, uma revelação! Um relógio penso na parede. Um relógio caindo da parede. Um homem prisioneiro do dia da sua morte. Encurralado pelo seu destino, no cedro vigoroso daquelas toras de madeiras.

Fechando a porta dos fundos, reteve a noite, Manoel Vieira. Pôs a capa negra, as botas, o chapéu.

Foi ao encontro da morte como aos braços de uma mulher: preparou-se para o apertado enlace com uma fêmea a quem jamais vira - de tão singular - mas de todos conhecida - de tão vadia!

Andou na rua, as botas emitindo o som metálico de um punhal na pedra furando a água, de tão insistente.

Sentiu um arrepio quando o vento cortante arreganhou a copa do fícus plantado no meio da rua e a solidão cobriu seu rosto, pela última vez anuviado.

Não sentiu medo, mas um calafrio, valei-me!!

Não havia réstia de horizonte, só o negrume da noite tomando a sua alma...

A névoa e a noite bailando coma sua inescapável solidão.

Manoel Vieira sabia que aquela morte, não sendo a primeira, não poderia ser a última e isto o angustiou...

Mas enfrentaria o seu touro na arena e o venceria com o punho de dupla cana, abrindo-lhe uma fenda na testa assassina, porém, inutilmente. O seu prazer era ver também padecer o touro, enjaulado num indeclinável propósito.

Sangue purgando sangue!

Muitas lutas sangrentas mediariam o espaço entre as duas mortes, a de Manoel Vieira e a de Bazin, quarenta e seis anos após. Cobertas pela miopia das gerações as pegadas de Manoel Vieira se punham ao perigoso alcance do esquecimento; ignorado o seu desejo irrefragável na madrugada de negro cetim, esquecidas a elegância, as luvas, a capa...

Quase de nenhuma valia o arrojado gesto senão para abrir uma ferida na história e fincar um marco que permitisse ao futuro e, por extensão, ao passado, penetrar no intrincado caleidoscópio familiar.

Possivelmente, a Manoel Vieira, quando o arrepio atravessou todos os arcos de sua espinha e sentiu-se como um cão no limite do medo, possivelmente, não Ihe foi possível apreender tal serventia em certos gestos, como a de autorizar - pelo seu impacto, pela sua rudeza -a violação por nós da tranquilidade dos mortos e de seus incontáveis segredos, nós, que tantas vezes nos veremos violados, quem sabe impudicamente.

Foi pensando nas razões que levaram Manoel Vieira a tomar dos arreios de sola nova, pendurados no armazém e envolver o próprio pescoço com as tiras grossas de couro, com solene calma, com quase desleixo, mas firmemente, e sentir o nó roubar-lhe a vista; foi pensando na vertigem que sentiu Manoel Vieira quando saltou - com olho de peixe morto- para o nitrogênio do nada, o mundo ali embaixo, visto de cima pela última vez, foi pensando na fresta de luz que banhou o seu rosto aliviado na descontrolada hora, que corri a destrinchar esse novelo infindável da memória, de grosso calibre.

Manoel Vieira foi o estopim que liberou a navegação em todos os rios do meu peito, cheio de igarapés. Na morte premiou-se com o recolhimento, gozando da quietude de sua própria morte, notado que foi - tão-somente - pelo sol alto das nove horas.

Um banco caído, um homem vestido de preto, de luvas pretas, de capa preta, de máscara, fruindo o seu indelicado gesto! A porta entreaberta deixa entrever ovelhas que passam com seus guizos, desatentas.

Alguém passa na rua fumando um cigarro de palha, indiferente às corujas bisbilhotando das janelas, insones, em festa!

Manoel Vieira fecha os olhos quando invadem o armazém e a fúnebre notícia já invadira a praça no cheiro meio-doce de sensíveis alfazemas (??), de todos logo pressentido.

Essas duas mortes selaram o meu destino; Manoel Vieira e Bazin.

E me obrigaram a um vôo sem proteção sobre o pátio das eras, onde dormem todas as paisagens e todos os riscos.

Um, meu bisavô materno, do lcó, Manuel Vieira de Albuquerque, o outro, Bazin, Padim Vovô, criou meu pai, meu primo, chamado Sebastião Afonso de Alencar, filho de Tia Liu.